terça-feira, 25 de outubro de 2011

Recado da Mary

Acabamos de publicar no Joia br um "preview" da coleção outono/inverno da Mary Design, que será apresentada em desfile na manhã desta quarta-feira (26), em BH. O texto que Mary Arantes nos enviou é um belo e tocante depoimento. E, como pede a Mary, quem curtir, compartilhe.
A gente curtiu, e muito!

Tempos Modernos - Manifesto ao Apreço

...“como se sentissem solitários em razão da própria densidade da multidão que os rodeia”…O Homem da Multidão, Allan Poe

Assisti missa pelo rádio, na infância. Na hora de ajoelhar, ajoelhava, na hora da benção, a recebia num ato de fé e teatralidade. A novela, também pelo rádio, Marcelino Pão e Vinho me encantava. As vozes dos atores me levavam longe. A imaginação era fertilizada naquele território de claros e escuros, noites sem luz que facilitavam o assombramento do imaginário.

Na adolescência, cantei "Prá não dizer que não falei das flores", amei os Beatles e os Rolling Stones; li Sartre, assisti aos filmes de Fellini, curti os festivais da MPB em TV preto e branco. Ouvi notícias da guerra do Vietnã, chorei em Woodstock, curti fossa e insatisfação dos adolescentes, flertei, me apaixonei e vi o homem ir à lua. Vi o futuro chegar, sem ser prateado, como previa o figurino em Barbarella. Mas me espantei com a modernidade de Laranja Mecânica e com cenas de sexo no Último Tango em Paris.

Inaugurei a era da internet pelas mãos dos meus filhos, que, delicadamente, me conduziram a um mundo que não era o meu. Andy Warhol já proclamava os 15 minutos de fama que teríamos e o Facebook nos dá hoje a oportunidade de ser célebre e passear pelo mundo virtual contemporâneo, observando a tipicidade social, flanando pelos murais, fazendo um verdadeiro raio-x da nossa sociedade.

Quando Poe escreveu o conto O Homem da Multidão, Londres era uma das cidades mais populosas do mundo e, hoje, o mundo – “mar tumultuoso de cabeças humanas” - parece não mais nos caber. Visitamos as páginas dos “amigos”, mas nunca nos sentimos tão sós.

Não mais nos maravilhamos ao abrir os jornais diários com notícias estapafúrdias, o incomum já não nos comove, tudo parece já ter sido visto ou lido.

O grande erro da Revolução Industrial foi esquecer o homem, esse homem que foi à lua, mas não consegue fazer um trajeto menor que é ir da cabeça ao coração, da razão ao sentimento. O homem moderno valorizou a razão, o cérebro é o centro do mundo. Mas temos que aceitar a culpa por esse mundo moderno, o mundo do sempre mais, do descartável.

Entretanto, o mundo moderno trouxe excelentes realizações. Hoje pode e deve ser melhor, se levarmos em consideração o que aprendemos ou poderíamos ter aprendido com o passado. Por outro lado, nunca se falou tanto nele em retro. Nunca o antigo foi tão novo. Nunca a memória esteve tão presente como uma referência primordial. Nesse mundo de Zé Ninguém, necessitamos de raízes. O Zé não quer mais ser ninguém.

Há 30 anos, quando comecei a fazer bijus, a maioria dos fabricantes já queria apenas a produção em série. Naquele momento, percebi que teria que fazer minha escolha: optei por ser peixe em piracema, nadar contra a maré, fazer o caminho inverso, prezando técnicas artesanais, valorizando o feito à mão. E valorizar o feito à mão é valorizar, com carinho, o trabalho do outro. No feito à mão, há o coração, o suor, o calor dos corpos, o raciocínio, o desejo de tornar bonito, de agradar.

A máquina oferece o bonito esterilizado, o não-homem, a não-memória, o não-sentimento. Sempre quis oferecer bijus que tivessem mais permanência e menos modismo. O que o homem faz me emociona. Esse fazer, cujas mudinhas estão acabando. Fiz do tecido minha morada, enviesei por panos, enveredei por labirintos de rendas e crochês. Anos se passaram e todo o apreço pelo faça você mesmo persiste, mas também resiste (a duras penas) à invasão chinesa, indiana, à alta carga tributária, à falta de incentivos e proteção ao nosso ganha pão.

E, junto a tudo isso, as palavras colhidas nos tempos modernos vêm à tona: pressa, pressão, depressão, sobrancelhas vincadas, stress, correria, falta de tempo. Meu ganho foi uma arritmia cardíaca, totalmente fashion.

Primavera, verão, outono, inverno deixaram de ser estações para serem lançamentos. Mais o pré-lançamento, mais o alto verão, festa... As datas se superpõem e fazer coleções com tema, pesquisa, profundidade, para nelas colocar o apreço e a dedicação, tem sido cada dia mais difícil. O tempo urge, quanto mais fazemos mais nos sentimos em dívida com nós mesmos, uma sensação de nadar eternamente em busca da terra à vista, sem nunca chegar.

O tempo de vida útil do produto nas lojas ficou mínimo com tanta oferta, fadado a morrer antes mesmo de nascer. O fast fashion não me apetece. O delivery chegou à moda e esmaga quem trabalha com planejamento de entregas. A crítica aos Tempos Modernos é uma critica ao homem que vê nos objetos apenas objetos, que desumaniza o que há por trás dos objetos.

Esse é o homem Fast Fashion. Esse é o homem que eu não quero ser! Moda, mais do que nunca, como é feita e pensada, não me fascina. Faz tempos deixei de fazer apenas bijus. O que sempre me importou foi o COMO, o PORQUÊ, sempre a história por trás do produto. Um produto que foi manipulado, acariciado, e que é ofertado ao consumidor quase como uma dádiva. Por isto me dedico a pensar, a criar, a reciclar, e a questionar um princípio intrínseco à idéia da Moda, que é a rápida substituição do novo pelo mais novo.

Tudo bem, não sejamos utópicos. Trabalha-se (preferencialmente) por prazer e para a sobrevivência. Isto, no nosso ramo, significa vendas. Mas não significa escravidão a uma demanda insana pelo novo substituível. O novo pode ter uma história e pode ter sentimentos. E sentimentos não são descartáveis, se acumulam.

A engrenagem tão mostrada por Chaplin no filme homônimo ao nosso tema, Tempos Modernos, continua nos massacrando, o imediatismo impera. Tempo, cada vez mais, é artigo de luxo. Mais do que nunca é preciso colocar o coração à frente de tudo!

Me vem à boca o quadro O Grito, de Edward Munch, de 1893, ou seja, no auge da Belle Époque, ou, podemos dizer, no começo do fim da vida que ainda via vantagens no moderno per si, sem se ater que, ao isolar o sentimento, o homem também se tornava máquina.

Quem curtir este texto, favor compartilhar, como grito, ao que todos sentem e não dizem por se sentirem sós. Que esse grito seja pelas empresas que, ao longo desses tempos, vi fechar. Pelas fábricas do nosso setor que deixaram de produzir contas lindas e foram substituídas por máquinas que cospem milhares de contas (iguais) em segundos. Muitos fabricantes viraram revendedores. Sim, é mais fácil, neste país, ser comerciante do que fabricante; ou simplesmente por aqueles que se calam, sem voz nem vez.

A coleção foi, toda ela, pensada e feita com sentimentos colhidos desde a Revolução Industrial aos tempos modernos. Lemos de Allan Poe a Le Corbusier, textos de design do pós-guerra, vimos a apresentação Propaganda, do circo Acrobat, exposição Máquinas e Warhol TV e aula com a professora Mariana Rodrigues, que nos guiou Pelos caminhos da modernização, da modernidade e do moderno.

Este Manifesto ao Apreço, apreço ao homem, aos sentimentos, ao trabalho, ao suor, ao saborear, ao aconchego, ao valor das pequenas coisas, à criatividade, à pesquisa, ao entender, ao compreender, ao ajudar e à dádiva, espera um debate do setor para mudar calendários e tudo o que nos aflige, espera por mudanças governamentais que nos incentivem a continuar criando e acreditando no que fazemos.

Sempre disse que quem tem uma marca tem que levantar bandeiras, e esta é a que levanto agora.

Mary Figueiredo Arantes



Um comentário:

Raquel Monteiro disse...

OI Mary,
Coicidência ou não,tenho pensado muito no quadro "O Grito". Sou artesã de linhas e panos e há tempos não tenho meus surtos criativos e sem eles não sou nada.
O seu texto me deu a mão e me levou... pra uma zona sem conforto,
de clara realidade.
Belo texto, sábias palavras,
Abraço fraterno